terça-feira, 28 de dezembro de 2010

Violência de género, saber e agir: Perspectivas actuais da investigação e intervenção feminista

Violência de género, saber e agir:
Perspectivas actuais da investigação e intervenção feminista

Maria José Magalhães*

Decorreu, em Angra do Heroísmo, nos dias 22 e 23 de Outubro, um encontro formativo da UMAR dedicado às perspectivas de investigação e intervenção mais recentes na violência de género. A desconstrução do pensamento misógino e dos comportamentos machistas e sexistas (na sua forma hostil ou subtil) constituiu-se como elemento central neste encontro formativo.
As perspectivas dominantes sobre a masculinidade e a feminilidade e sobre a violência de género nas relações de intimidade conduzem a análises inadequadas do problema e a uma intervenção ineficaz, podendo resvalar para a culpabilização das vítimas e a desculpabilização dos agressores. O sexismo e o machismo consistem em preconceitos que condenam antecipadamente as mulheres e justificam os homens violentos.
Neste encontro, reflectimos acerca de uma perspectiva feminista na compreensão da violência de género, na medida em que esta visão traz uma compreensão mais global e abrangente sobre este grave problema social: não o reduz a comportamentos individuais nem o restringe ao universo familiar, mas explica como a sociedade patriarcal está estruturalmente organizada para a submissão das mulheres no trabalho, na política, na arte, na ciência e, também, na família. Aqui, o feminismo mostra como a família não é uma ilha isolada do resto das relações sociais, é antes uma instituição na teia imbricada das relações interinstitucionais, de classe social, de etnia e de género, onde existe igualmente a hierarquia do poder de género.
O feminismo explica também como a socialização sexista (de todas e todos nós, mesmo das/os investigadoras/es e das/os técnicas/os) se exerce através da linguagem, da educação, da divisão sexual do trabalho, da genderização das profissões, da distribuição desigual das responsabilidades parentais e domésticas, da distribuição desigual dos cargos e do poder de decisão, atribuindo o espaço público aos homens, onde se espera deles competição, assertividade, afirmação, racionalidade, independência, progresso, cultura, e o privado às mulheres, onde lhes são atribuídos a sensibilidade, o cuidar, os afectos, a intimidade, a dependência. Esta divisão sexual do mundo constitui-se como crucial na criação de condições para os homens serem agressores e as mulheres vítimas. Esta separação do mundo em duas metades, além de ser um desperdício de talentos e bem-estar (quanto bailarinos, quantas engenheiras se perdem devido aos estereótipos), é também um campo minado na construção do amor, da paixão, da intimidade, da relação com o ou com a outra. Dela se espera que não pense em si, que seja altruísta, e que, por ser boa, tenha sucesso no espaço privado. Dele se espera que se centre nos seus objectivos (mesmo usando a força se necessário) e seja bem sucedido no espaço público.
Quando uma mulher se enreda num amor com um homem que, a certa altura, mostra indícios de vir a ser violento, tudo lhe diz e a empurra para ignorar os primeiros sinais e, o que é mais perigoso ainda, para investir na relação para que o agressor mude, porque lhe é muito difícil aceitar o fracasso nesta dimensão da sua vida – parece e vai mesmo ficando, também pelas estratégias do agressor, progressivamente isolada, sem amigos/as, família, muitas vezes sem trabalho… As investigações mostram, no entanto, que, faça a vítima o que fizer, o agressor não muda, e, se ela ainda tentar corresponder aos seus desejos, o ciclo da violência tende a agravar-se.
Finalizou-se o encontro com uma referência ao trabalho pioneiro das feministas no que se refere à intervenção com os agressores, apresentando alguns dos estudos que mostraram o impacto destes modelos de intervenção face aos modelos tradicionais. O feminismo, desde há mais de três décadas, vem clamando e desenvolvendo intervenção com homens agressores, até pela imperiosa urgência de romper com a continuidade dos processos de vitimização das relações de intimidade. Mesmo quando se consegue ajudar uma vítima é muito grande a probabilidade daquele agressor repetir o comportamento violento com a sua próxima namorada ou companheira. Por isso, esta intervenção tem de incidir nos pontos nevrálgicos das causas do comportamento violento daquele homem em concreto – a sua misoginia, machismo e sexismo.
Finalmente, este encontro permitiu a partilha de saberes, dúvidas, interrogações e pluralidade de perspectivas entre as diversas equipas da UMAR dos pólos, mostrando (a mim, particularmente) o dinamismo, a juventude, a alegria, a abertura e a inovação destas equipas. Ressalto ainda a profundidade de reflexão, o sentido de historicidade e a serenidade de Clarisse Canha e Maria José Raposo no enfrentamento dos novos desafios que nos/lhes estão colocados.

* Presidente da UMAR
Investigadora do Centro de Investigação e Intervenção Educativas
Docente da Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto

Publicado na Página Igualdade XXI do Jornal Diário Insular de 28 de Dezembro de 2010

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