sexta-feira, 30 de setembro de 2011

Género: entre a multiplicidade de opressões e a especificidade da intervenção

Salomé Coelho
Vice Presidente da UMAR

A sessão começa com a escolha de um pedaço de papel que diz quem a pessoa é: “és uma lésbica de 22 anos”, “És um jovem árabe, muçulmano, que vive com os pais, fortemente religiosos”, “ És proprietária duma próspera sociedade de importação-exportação”, “És um emigrante ilegal moldavo”... e muitos, muitos outros papéis. “Avança um passo se a resposta ao que vou perguntar for SIM” – propõe a voz, para logo de seguida começar: “Consideras que a tua língua, a tua religião e a tua cultura são respeitadas na sociedade em que vives?”. Há quem avance em sinal de concordância; há quem fique no mesmo lugar. E o mesmo acontece nas muitas instruções que se seguem “Beneficias de protecção médica e social adaptada às tuas necessidades?”, “Podes receber amigos para jantar?”. No final, a sala tem pessoas em lugares muito diferentes, mas nunca em linha recta, lado a lado. Atrás de si há sempre alguém; à sua frente também. São assim os nossos lugares na sociedade, em que nunca somos apenas desprivilegiados/as nem constantemente privilegiados/as. O sexismo é inegável, no entanto, ele não afecta da mesma forma mulheres brancas ou asiáticas, negras ou ciganas, não tem os mesmos impactos nas classes mais desfavorecidas ou nas mulheres com poder económico, não é igual ser-se uma mulher heterossexual ou lésbica, em Portugal, bissexual ou transgénero. A discussão partiu daí, tendo o exercício servido de mote à formação “género e outras discriminações” que decorreu no âmbito do projecto “Encontros Regionais”, da UMAR Açores, que pretendia reflectir sobre a multiplicidade das discriminações e, ao mesmo tempo, a especificidade da discriminação e da intervenção na área do género. Foi um dia intenso, de diálogo, de reflexão e descobertas.
“Há um concerto a que querem muito ir, na capital. A insularidade, o isolamento pode ser um problema?”, todas concordavam que sim. Mas será a insularidade igual para uma mulher com poder económico para comprar a viagem de avião e faltar um dia ao trabalho, ou para uma mulher com vínculo de trabalho precário? E será igual para uma mulher com deficiência? As perguntas ficaram a retinir e a resposta veio como muitas outras: com a certeza que as discriminações dialogam e se transformam mutuamente, que se multiplicam e reconfiguram. Face a uma mesma oportunidade, muitas poderão ser as consequências, dependendo do nosso estatuto socioeconómico, da nossa etnia, da idade, das (in)capacidades, da orientação sexual ou se somos transexuais, para dar alguns exemplos. No entanto, a discriminação de género perpassa todas estas categorias. Não nos são estranhos os números que dizem que as mulheres constituem 70% dos pobres de todo o mundo; que quando as mulheres negras são comparadas com homens negros, têm tendencialmente menos escolaridade; quando são mulheres com deficiências comparadas com homens na mesma condição, são elas que têm mais dificuldades no acesso ao emprego, e por aí fora.
Saímos daquela formação com a certeza que todas as faces da identidade são partes integrais inter-relacionadas de um todo complexo e sinergético, e que quando se ignora, se esquece ou não se nomeia uma das faces da identidade, a visão desse todo é completamente diferente. E saímos com a certeza de que apesar da necessidade da nossa intervenção feminista se alargar e relacionar com todas as outras categorias de opressão, uma resposta específica direccionada para as questões de género é ainda extremamente necessária porque tendencialmente ignorada e secundarizada face a outras categorias de opressão.

Publicado na Página Igualdade XXI - Diário Insular de 30 de Setembro de 2011


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